terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Papa Francisco e os animais

Ridículos! Os jornais escolheram ser ridículos, e de modo obstinado.
Nos últimos dias, uma notícia explodiu no mundo inteiro, sendo replicada por presumivelmente respeitáveis órgãos de comunicação: o Papa Francisco teria ensinado que os animais vão ao céu.
Pronto!, as sociedades protetoras dos animais celebram, os naturalistas regozijam, os eco-teólogos brindam-nos com páginas de solenes elucubrações doutrinais acerca da nova aporia… Um circo de horrores.


Acontece que o Papa nunca disse tal coisa, e o repetido episódio do menino que chora pela morte de seu cãozinho simplesmente não aconteceu.

A origem de toda a confusão é um artigo publicado no jornal italiano “Corriere della Sera”, que interpretou imbecilmente as palavras do Santo Padre na Audiência Geral de 26 de novembro de 2014 e reporta o tal conto da criança em luto canino, que seria atribuído mitologicamente a Paulo VI.
Não sei se atribuo o quiproquó à maldade dos jornalistas ou a uma sua eventual dificuldade de interpretação de texto, causada talvez pela pressa em ler, comum nas redações de jornal… Em todo caso, as palavras de Francisco foram as seguintes:

“A Sagrada Escritura ensina-nos que o cumprimento deste desígnio maravilhoso não pode deixar de abranger também tudo aquilo que nos circunda e que saiu do pensamento e do Coração de Deus. O apóstolo Paulo afirma-o de forma explícita, quando diz que ‘também ela (a criação, será) libertada do cativeiro da corrupção, para participar da gloriosa liberdade dos filhos de Deus’ (Rm 8, 21). Outros textos utilizam a imagem do ‘novo céu’ e da ‘nova terra’ (cf. 2 Pd 3, 13; Ap 21, 1), no sentido que o universo inteiro será renovado e libertado de uma vez para sempre de todos os vestígios de mal e da própria morte. Por conseguinte, aquela que se prepara como cumprimento de uma transformação que na realidade já está em ação a partir da morte e ressurreição de Cristo, é uma nova criação; portanto, não se trata de aniquilar o cosmos e tudo o que nos circunda, mas de levar todas as coisas à sua plenitude de ser, de verdade e de beleza” (FRANCISCO, S.S., Audiência Geral, 26.11.2014).
Esta doutrina é bíblica e unanimemente presente na tradição eclesial. O universo será renovado, recapitulado, repatriado. Os Padres, Doutores e Escritores Eclesiásticos são unânimes quanto à matéria, não o são, contudo, quanto ao modo em que se dará tal renovação, e tampouco o Papa se posiciona a respeito.

De fato, este é um debate teológico de altíssimo nível.
De um lado, temos, por exemplo, a contribuição do Bem-aventurado João Duns Escoto, franciscano, cuja teologia do “primado do amor” tende a considerar que Deus ama todas as criaturas por si mesmas, de modo que o ato criador, de certo modo, implicaria qualquer definitividade, da qual estaria prenhe toda a obra da criação, para Deus orientada. Entretanto, não é fácil entender o Beato Escoto, e não é atoa que a tradição lhe atribui o título de “doctor dubtilis” e na análise de seus textos abundam os advérbios de dúvida e de intensidade. Por exemplo, em sentenças suas como esta: “Tu és a bondade sem limites e irradias os raios de grande generosidade por toda parte. A Ti, ápice de toda amabilidade, recorrem, a sua maneira, todas as criaturas como a seu último fim” (JOÃO DUNS ESCOTO, B., De primo principio, c.4., n 10), não se pode depreender nenhuma eco-teologia.
De outro lado, porém, a clareza de São Tomás de Aquino apresenta outra contribuição para o debate. Comentando as Sentenças de Pedro Lombardo, afirma o Aquinate:

“Porque a renovação do mundo acontecerá para o homem, é necessário que esta seja adequada à renovação do homem. Ora, renovando-se, o homem passará do estado de corrupção para o estado de incorruptibilidade e de quietude perpétua, segundo as palavras de São Paulo: ‘é necessário que o corpo corruptível seja revestido de incorruptibilidade’, por isso, o mundo será renovado de modo que permaneça em quietude perpétua, depois de ter perdido toda incorruptibilidade; por isso, nada que não estiver ordenado àquela incorruptibilidade pode ser ordenado à renovação do mundo. Ora, os seres a isto destinados são os corpos celestes, os elementos e os homens. Os corpos celestes, de fato, são incorruptíveis por sua própria natureza, seja em sua totalidade como em suas partes. Os elementos, ao contrário, são corruptíveis nas suas partes, mas não em sua totalidade. Os homens, enfim, são corruptíveis seja na sua totalidade quanto em suas partes: isto, porém, segundo a matéria, não segundo a forma, isto é, segundo a alma racional, que permanece incorrupta depois da destruição do corpo. Ao contrário, os animais, os vegetais e os minerais e todos os corpos mistos se corrompem, seja em sua totalidade que em suas partes, tanto segundo a matéria, quando perde a sua forma, quanto segundo à forma, que não permanece em ato. Portanto, estes seres não são ordenados à incorruptibilidade e, assim, não permanecerão na renovação final, diversamente das criaturas acima mencionadas” (TOMÁS DE AQUINO, S., In 4 Setentiarum, Dist. 48, q. 2, a. 5, Solutio. Cf. IDEM, Quæstiones Quodlibetales 10, q. 4., a. 2).

Alguém poderia concluir, portanto, que, para o Doutor Angélico, o universo não será repatriado na nova criação, pois os entes inferiores ficariam excluídos dela, mas esta interpretação é equivocada. Com efeito, no comentário a Rm 8,22, “sabemos, de fato, que toda a criação geme e sofre as dores de parto etc”, diz claramente:

“Se isto for entendido como referido aos homens, então a criatura humana é chamada de ‘toda criatura’, porque participa de todas as criaturas: nas espirituais, quanto ao intelecto; nas animais, quanto à animação do corpo; nas corporais, quanto ao corpo. Por isso, esta criatura, ou seja, o homem, ‘geme’, em parte por causa dos males que sofre e em parte por causa dos bens que espera, que ainda estão distantes” (TOMÁS DE AQUINO, S., Super Epistolam ad Romanos Lectura, L. 4, n. 673). É neste sentido que toda a criação aguarda a manifestação dos filhos de Deus!
E, comentando Ef 1,10, “recapitular todas as coisas em Cristo etc”, diz:
“De fato, todas as coisas foram criadas para o homem, por este motivo diz que serão recapituladas. (…) ‘As da terra’, enquanto as realidades celestes trazem a paz também àquelas terrestres” (TOMÁS DE AQUINO, S., Super Epistolam ad Ephesios Lectura, L. 3, n. 29).

Traduzindo-o em poucas palavras, sendo o homem um microcosmos, que participa de toda a criação, visível e invisível, pelo mistério da encarnação, salvando o homem, Cristo recapitula, nele em Si, toda a criação.

Nada mais incompatível com a doutrina censurada do jesuíta Teillard Chardin e da gnose panenteísta, que entende haver uma partícula divina inviscerada em cada criatura. Obviamente, os partidários destas opiniões se servem da confusão para promoverem suas teses.

Em todo caso, o cãozinho do menino não ressuscitará e, se alguém quiser dizer que os cachorros permanecerão de algum modo no céu deve dizê-lo apenas de forma virtual, enquanto todas as coisas inferiores tendem ao homem e são recapituladas de algum modo em Deus, mediante o homem, na mediação sacerdotal de Cristo.

Por isso, acho que seria muito melhor que os jornalistas e as sociedades protetoras dos animais se ocupassem de seus próprios assuntos, cuidassem dos animaizinhos, e deixassem a nós o cuidado da teologia, ao invés de tentarem animalizá-la, aliás, talvez à sua própria imagem e semelhança.

Pe. Dr. José Eduardo de Oliveira e Silva

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